sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Entrevista com o Presidente da Natura

Entrevista




Fundador da Natura, Luiz Seabra ataca as promessas exageradas feitas pela indústria da beleza, mas reconhece que muitos consumidores vão às compras com espírito de “me engana que eu gosto”


Andreas Müller

Luiz Seabra tinha apenas 16 anos quando se deparou pela primeira vez com os ensinamentos de Plotino, um filósofo posterior a Platão que prega a visão holística da vida. Antes, aos 12, havia conhecido Freud, o pai da psicanálise. E foi assim, amparado por dois exploradores das ciências humanas, que Seabra deu origem a um negócio infalível: o de vender bem-estar. Desde que criou a Natura, em uma “lojinha” no centro de São Paulo, em 1969, Seabra busca dar mais do que cremes, hidratantes e perfumes a seus consumidores. “Procuramos oferecer instrumentos para que as pessoas se relacionem melhor com o próprio corpo”, resume ele. Não se trata apenas de um enunciado de marketing. Seabra explica que, desde o Iluminismo, a consciência é “localizada” na cabeça, como algo restrito ao cérebro. “Mas a verdade é que a consciência está no corpo todo. Logo, é preciso cuidar do corpo para se ter uma melhor relação com aquilo que está a nossa volta”, teoriza. Nesta entrevista exclusiva a AMANHÃ, o empresário conta por que decidiu apostar em campanhas de publicidade que exaltam a beleza “real” da mulher em vez dos velhos estereótipos que reinam na mídia. Observa que, ao contrário do que se afirma por aí, os homens não ficaram mais vaidosos (“e sim mais conscientes”) e revela quais são os filósofos que levaram a “lojinha” a se tornar a maior fabricante de cosméticos do país.

A Natura se esforça para mostrar que está alinhada a conceitos de desenvolvimento sustentável e responsabilidade social. Na Europa, sabemos que esse valor já pesa na escolha da marca. E no Brasil?

De fato, a consciência coletiva em relação à responsabilidade social e à sustentabilidade é maior na Europa. Mas eu diria que, no Brasil, ela cresce mais rapidamente do que lá – especialmente no que diz respeito ao direito do consumidor. Com freqüência, tanto em Londres quanto em Paris, você se questiona se existe uma consciência dos direitos do consumidor. Muitas vezes, você se defronta com empresas com uma visão tão burocrática, tão voltada para o business propriamente dito, que você chega a se perguntar onde está a responsabilidade social vis-à-vis o consumidor.

A Natura trabalha muito com a imagem do Brasil tropical, do Brasil com pessoas felizes e bonitas. Essa imagem é sustentável?

Muita gente diz que o brasileiro é feliz porque está sempre sorrindo. Mas o sorriso não é expressão de felicidade. O sorriso é expressão daquilo que o Sérgio Buarque, em Raízes do Brasil, chamava de “cordialidade”. Não adianta você estar sorrindo se, por dentro, você está infeliz. Essa cordialidade é um traço fundamental do brasileiro, mas tem um lado de sombra e um lado de luz. Eu diria que a Natura vê o lado iluminado da cordialidade. Pois é o lado que todo brasileiro tem e que os estrangeiros valorizam muito.

A Natura começou como uma loja, em 1969, e quatro anos depois adotou o modelo de vendas diretas...
(Interrompendo) A empresa nasceu modestíssima. Eu mesmo atendia os clientes em uma lojinha na Rua Oscar Freire, em São Paulo. A opção pela venda direta foi o movimento transformador na nossa história.

E o interessante é que este movimento teve início na Região Sul, não?
Sim, o piloto deste modelo começou no Rio Grande do Sul.

Por que o Rio Grande do Sul?Nós havíamos chegado a um impasse. Precisávamos fazer a Natura crescer e, para isso, teríamos de multiplicar o número de lojas, o que provavelmente aconteceria por meio de um processo de franchising. Mas esse modelo, embora novo no Brasil, já era conhecido no exterior. Então nós conhecemos um distribuidor gaúcho que parecia ser bastante obstinado, interessado. E ele nos mostrou que a venda direta seria a melhor via de crescimento para a Natura. Em vez de multiplicar as lojas, teríamos a oportunidade de multiplicar o número de “Luizes Seabras”. Era eu que tinha o contato com a clientela. E nós optamos por essa segunda via justamente a partir da experiência vivida no Rio Grande do Sul, em 1972.

De lá para cá, o que mudou no perfil do consumidor brasileiro?
O nível de exigência e de sofisticação do nosso consumidor se tornou muito maior. Quem compra cosméticos, hoje, exige um melhor comportamento de texturas, de cores, de fixações (no caso das maquiagem) e de performance (no caso de fragrâncias ou de xampus). O foco de interesse em cosméticos também mudou. Antes, as mulheres focavam muito no “mundo da beleza”. Mas hoje há uma consciência corporal mais refinada. As mulheres se preocupam em saber como os produtos podem fazer bem, como funcionam, onde atuam etc. Cada vez mais consumidores procuram produtos não só para ficar mais bonitinhos, e sim para se sentirem bem. O cosmético é, antes de mais nada, um instrumento para se ter maior intimidade com o corpo, com o nosso próprio corpo. É o que eu chamo de consciência corporal.

Seria essa consciência corporal o estopim de campanhas publicitárias que exaltam a beleza “real” da mulher?
Tradicionalmente, o que predominava no mundo da beleza era a manipulação do consumidor. Era uma manipulação imagética, de estereótipos de como “deveria ser” a beleza. E também uma manipulação de promessa: a da juventude eterna. Antes de fundar a Natura, eu pesquisei o mercado e descobri um produto americano chamado “Eterna 27”. Eu fiquei estarrecido. Parecia um nome genial, mas era uma mentira. Nós não ficamos eternamente em momento nenhum da vida, muito menos nos 27 anos. Então comecei a refletir: por que uma indústria que lida com algo tão extraordinário como o cosmético tem de usar esse tipo de manipulação?

Mas uma das funções do marketing é a de tornar visíveis os desejos inconscientes do consumidor. Logo, é de se esperar que as empresas explorem esse ímpeto de se ter uma juventude plena ou “eterna”, não?

Mas é mentiroso! E ainda gera uma derivada perigosa, que é a discriminação em relação ao velho, ao passar do tempo. Devemos ter maturidade para lidar com essa questão existencial. Mas não podemos usar isso como instrumento para a busca de poder e de competitividade. O que está no fundo desse desejo é simplesmente o nosso medo de morrer. Há pessoas que agem e consomem cosméticos num espírito de “me engana que eu gosto”. Só que, na medida em que isso ocorre, as pessoas ficam cada vez mais angustiadas. Cada vez mais há a discriminação contra o passar do tempo no corpo. E isso provoca esta enorme corrida por medidas que atenuem ou eliminem o passar do tem po, os sinais de envelhecimento. Mas até que ponto vai essa angústia?

A explosão no mercado de cirurgia plástica pode ser considerado um efeito do espírito “me engana que eu gosto”?
Pessoalmente, não sou avesso à cirurgia plástica. Acho que ela pode ser considerada uma forma de alquimia moderna. Mas a angústia de ficar sempre buscando uma transformação imagética, de recuperar o tempo perdido... Parafraseando Proust, isto é um mal dos nossos tempos. É uma forma de desequilíbrio social e é até um crime cultural – na medida em que uma indústria exerce esse tipo de manipulação. Uma das bandeiras da Natura é promover uma melhor relação da pessoa com o seu próprio corpo. É estimular a auto-aceitação. A partir da auto-aceitação é que nós nos tornamos melhores para nós mesmos e para o outro.


Mas não é contraditório a Natura buscar isso? O consumidor que está bem consigo mesmo, sentindo-se bonito, tende a comprar menos cosméticos?

Talvez. Nossa sociedade ainda tem uma dose descomunal de neurose. Muita gente consome para preencher o seu “vazio existencial”. Mas acho que, com esse posicionamento, estamos gerando uma consciência de consumo. Lá na ponta, teremos um consumidor mais qualificado e fiel. Quando nós saímos com a campanha da “Mulher Bonita de Verdade”, em 1996 e 1997, o número de correspondências que recebemos foi comovente. Eram mulheres simplesmente agradecendo aquele tipo de posicionamento que havíamos adotado. Para muitas delas, foi algo libertador.

Você não teme ser interpretado de maneira distorcida, ao colocar a Natura na posição de empresa que “vende felicidade”?

Não, a felicidade está em outro departamento. É claro que, a partir de uma melhor relação com o próprio corpo, a pessoa pode, sim, começar a se sentir um pouco mais feliz. Mas a nossa razão de ser é promover o bem-estar e o “estar bem”. É promover uma melhor relação do consumidor com o próprio corpo e, conseqüentemente, uma melhor relação com o próximo, com o outro, com a outra.


“A pele humana está mais sensível. Cada vez mais, as empresas
terão de buscar fórmulas com menor índice de rejeição orgânica.
Ao mesmo tempo, tende a aumentar a procura por cosméticos naturais”

É mais fácil vender para mulheres ou para homens?
Vender para mulheres é mais simples. Mas o homem tem uma característica interessante: quando experimenta um produto cosmético e se satisfaz, ele se torna altamente fiel ao produto. Já a mulher é mais curiosa, gosta de experimentar, de comparar.
Os homens estão, mesmo, mais vaidosos?
Eu tenho uma visão diferente. Desde que eu criei a Natura, já se dizia que o homem estava ficando mais vaidoso. Mas eu digo que o homem ficou mais consciente. No meu ponto de vista, vaidoso é quem não precisa usar nada, nenhum creme, nada. Isso é que é vaidade: achar que você está “pronto”. O homem ficou mais consciente e deixou de lado um pouco daquele espírito machista e coronelista de dizer que cosmético é coisa de mulher. Houve um refinamento e surgiu a consciência de que é preciso estar bem, estar melhor para o outro.

Você costuma dizer às consultoras de venda e aos funcionários da Natura que o trabalho deve proporcionar prazer. Num mundo em que as empresas estão cada vez mais voltadas para o resultado e menos para o lado “humano” dos negócios, como se coloca em prática esse conselho?

A palavra “trabalho”, na maioria das línguas latinas, vem de tripalium, que era um instrumento de tortura na Idade Média. Desde que eu era garoto, eu sentia que o trabalho era visto como um castigo. Aliás, essa visão tem respaldo até na Bíblia, no momento em que o trabalho é apresentado como um dos castigos infligidos ao homem por ele ter desobedecido a vontade divina. Embora não seja profundo conhecedor, eu sou muito ligado à lingüística. Eu acho que é através da palavra que nós podemos nos libertar. À medida que certas palavras carregam uma sombra tão pesada quanto tripalium, só nos resta buscar a solução na nossa alma. Temos de estar bem, dispostos a viver o “agora”. Então conseguiremos ultra passar essa tendência a ver o trabalho como uma forma de punição.

O que nossos empresários têm de fazer para alcançar e proporcionar esse estado de bem-estar?
Eu acredito que todos os empresários deveriam percorrer a filosofia, o pensamento clássico e suas escolas de pensamento. A filosofia é a melhor maneira de se acelerar o crescimento da ética no mundo.

Quais são os filósofos que regem o trabalho da Natura?

A nossa razão de ser foi embasada em dois pensadores clássicos: o Plotino, que é um neoplatônico, e Epicuro, que normalmente só é lembrado em relação ao prazer, às grandes refeições etc. O primeiro dizia que há uma relação entre todas as coisas, que tudo está interligado. E Epicuro falava que o fundamento da existência é você ter uma vida baseada na ética. Essas são as raízes da Natura. Mais recentemente, eu tenho lido um pouco sobre o confronto entre Descartes e Spinoza. Descartes está na base do pensamento iluminista, que nos levou a um progresso descomunal e, no entanto, também nos levou a essa fragmentação social, que está na origem da nossa angústia coletiva. Descartes dizia que, da parte, você deduz o todo. Já o Spinoza dizia o contrário: que, sem conhecer o todo, você não descobre verdadeiramente a parte. Eu sou mais o Spinoza.

Como isso se traduz na rotina dos mais de 4 mil funcionários da Natura?
Nós temos uma razão de ser e uma série de crenças. E a primeira dessas crenças é de que a vida é um encadeamento de relações, que nada existe por si só. Essa “interligação” é reflexo do pensamento de Plotino e está na base do nosso conceito de sustentabilidade. O triple bottom line, que é o fundamento da visão sistêmica do pensamento empresarial, está na nossa razão de ser. O desafio que nós temos é de compartilhar esses conceitos com os nossos funcionários e consultoras de venda. É levar o pensamento clássico a eles sem chamá-lo de pensamento clássico e sem mencionar, forçosamente, Plotino ou Epicuro.

Que tendências se desenham para o mercado de cosméticos?
Os produtos terão de ser cada vez mais seguros. Há algo importante acontecendo, que é o aumento na sensibilidade da pele humana. A tendência a alergias e a reações adversas em geral está crescendo por uma série de fatores, entre elas a poluição atmosférica, que interfere diretamente na imunidade do nosso organismo. Cada vez mais, as empresas terão de buscar fórmulas com menor índice de rejeição orgânica. Ao mesmo tempo, haverá uma maior busca pelo natural, o chamado “cosmético natural”, que é a busca de princípios ativos vindos da biodiversidade, diretamente da natureza. Já trabalhamos amplamente alinhados a essa tendência, que vai ser muito forte nos próximos dez anos. 

Nenhum comentário: